A DOR
NICANOR /América Paoliello Marques
1 A dor é o produto do impacto do Amor sobre a imperfeição humana.
2 O espírito que sofre esse impacto, se já não é primitivo a ponto de ignorar qualquer forma de pesquisa do abstrato ou de mergulhar-se na revolta irreversível, indaga, perplexo, as causas da dor. E, mesmo quando a compreende como instrumento de aperfeiçoamento espiritual, não consegue furtar-se, ainda que subconscientemente, à ansiosa indagação — a Vida, ou Deus, ou seja, a designação que se dê à Força Criadora, não poderia lançar mão de recurso menos cáustico para a orientação adequada do espírito humano? Num século em que a própria face material do planeta se converte em fonte de bem-estar aprimorado nos mínimos detalhes, o processo evolutivo parece dissociado do padrão técnico de conquista suave e tranquilizadora dos objetivos a alcançar. Estaria a Espiritualidade desatualizada, empregando meios coercitivos numa sociedade propensa cada vez mais a utilizar meios suasórios? Seriam os adeptos das doutrinas espirituais conformistas adaptados a uma interpretação sadomasoquista da vida?
3 Todas essas interrogações ocorrem às almas sensíveis, àquelas que, realmente, buscam sua dose acessível de Verdade sem se deixarem “grampear” pelos convencionalismos de quaisquer origens. Devemos ouvi-las e não temê-las. De que valeria possuirmos suposta superioridade filosófica ou mesmo grau mais expressivo de conformação e grandiosidade de propósitos se não conseguíssemos ir ao encontro de quem padece tão dolorosas impressões?
4 A dor superlativa tolda a visão clara da situação vivida. A centralização sobre a ferida do “eu” interrompe a comunicação com a realidade objetiva e a alma se coloca, muitas vezes, como o animal atingido que lambe a ferida repetidamente, sem conhecer nenhum recurso externo, absorta na contemplação do mecanismo doloroso de sua prova. E descrê do Amor. E desilude-se da Providência.
5 Passado o nevoeiro da dor, no qual navegava pelo simples instinto de preservação, continua a interrogar — por que a dor? Não haverá outro processo?
6 Sim, ele existe e está em nossas mãos utilizá-lo. Entretanto, é preciso conhecer o mecanismo da Vida para poder chegar a pô-lo em prática.
7 Em primeiro lugar saber — de onde viemos e para onde vamos? Sem traçar essa linha claramente definida não podemos programar mais do que comportamentos isolados e desconexos, desprovidos da amplitude característica de um real planejamento. Hoje, a possibilidade de definição nesse setor já não é privilégio de alguns. De acordo com as tendências individuais, há fontes diversas de pesquisa da fenomenologia ou da teoria dos fatos espirituais. Todos podem recorrer, se desejarem, aos recursos inumeráveis que propiciam a constatação do fenômeno da vida extraterrena.
8 Vencida a primeira etapa, que é a da dúvida sobre o processo evolutivo do espírito na Criação, restará analisar o seu comportamento instintivo, para se concluir sobre a desconexão entre as leis da Criação que se expressam em Amor e colaboração como perfeita sincronia e a completa abstração que caracteriza o homem em relação aos propósitos gerais da Evolução.
9 Não será esta, também, uma característica que lhe foi imposta pela mesma lei que o criou? Poderia ele fugir a esta circunstância? Analisai vossos atos. Encontrareis sempre em vós uma dupla tendência, como um movimento pendular que vos induz ao sim e ao não alternadamente e entre ambos o fiel da balança da vontade que decide. Esta é uma das leis da Criação, aquela que vos toca mais de perto. Sois senhores de vossa individualidade eterna. Sua exaltação ou degradação encontram-se na exclusiva dependência do uso da vontade dirigida neste ou naquele sentido. O que vos faz descrer que assim seja é a visão parcial que possuís do conjunto evolutivo, formado pelas múltiplas formas de existência que ao espirito são proporcionadas.
10 A dor é o impacto que o Amor produz sobre o espírito condicionado em sentido contrário a Lei do progresso. A inércia, de características opostas à evolução, é eletrizada pelo impacto do Amor que visa impulsionar no sentido do crescimento o espírito acomodado com suas expressões medianas de progresso. A dor não foi criada. Ela não existe, senão na proporção em que nos apegamos de tal forma aos condicionamentos involutivos, que oferecemos resistência ao impulso criador da Vida. Se nos deixamos conduzir por ele, todos os obstáculos se desfazem à passagem da essência espiritual, que se escoa como linfa benéfica, a gerar novos condicionamentos relacionados com o mecanismo feliz da Criação.
11 Entretanto, antes que essa integração venturosa se processe o espírito desperto para o funcionamento adequado do ser precisará observar as normas indispensáveis ao reajustamento psíquico que lhe diz respeito. Precisará usar o fiel alia da balança, representado pela vontade dirigida no sentido de pesar e medir todas as expressões de sua individualidade eterna, até que sejam alijadas as que se contrapõem às leis gerais da evolução, às quais nenhum ser vivente poderá opor-se, sem choque natural com o fluxo Criador do Universo.
12 Ao verificar os benefícios da correção dos processamentos psíquicos habituais, o espírito como que “passará”, automaticamente, para um outro “campo de ação” mental e emocional. Terá sido iniciada uma cadeia de novos condicionamentos, capazes de produzirem a impressão de ser “um novo homem”. Este fenômeno é produzido em pequena escala, como produto da rotina evolutiva de todas as criaturas.
13 Quando desconhecem teorias relacionadas com os comportamentos psíquicos humanos, nem por isso deixam de adquirir, intuitivamente, o que se chama a “sabedoria popular”.
14 No entanto, na era dos planejamentos científicos, para os mais insignificantes detalhes da existência, o crescimento espiritual da humanidade está a exigir que se planeje em relação ao magno problema do ajustamento psíquico em relação ao grandioso plano da Vida. Com a diluição da matéria em energia, encontra-se próximo o momento em que esta abrirá às escâncaras a porta da Espiritualidade na Terra.
15 Será, então, o momento de reconhecer, por a + b, que a dor é o choque do espírito que, como o astronauta desavisado, se afastou da rota e se projeta contra os elementos das leis impessoais porque coletivas, ameaçando a estabilidade do conjunto de que participa. Logo que providencie seu reajustamento, admirar-se-á da existência de um constrangimento que poderia, tão simplesmente, ser evitado.
Fonte: TRANSMUTAÇÃO DE SENTIMENTOS – o amor-ciência como caminho (2018), p. 47-51. Este texto “A Dor” foi publicado originalmente na obra “A Rosa e o Espinho” (1974, Nicanor /América Paoliello Marques)
NOTA: A DOR é o estudo programado para 2/8/2022 (terça, 20:00) na reunião virtual mensal do Grupo Reflexões América Paoliello Marques.

